segunda-feira, dezembro 28, 2009

última do ano, loco por 2010

Esse, sem sombra de dúvida, é o conto que mais gosto, então, quem quiser saber, segue abaixo. E de autoria de Isabel Allende, disparada a escritora que mais li na vida. Está no livro "contos de eva luna".... de chorar comendo ranho, esse

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Somos Feitos de Barro

Descobriram a cabeça da menina saindo do lodaçal, com os olhos abertos, chamando sem voz. Tinha um nome de primeira comunhão, Açucena. Naquele interminável cemitério, onde o cheiro dos mortos atraía os abutres mais afastados e onde o choro dos órfãos e os lamentos dos feridos enchiam o ar, aquela rapariga obstinada em viver tornou-se o símbolo da tragédia. As câmaras, de tanto transmitirem a visão insuportável da sua cabeça saindo do barro como uma cabaça negra, fizeram com que ninguém ficasse sem a conhecer nem nomear.
E sempre que a víamos aparecer no ecrã, atrás dela estava Rolf Carlé, que conseguiu chegar ao lugar atraído pela notícia, sem suspeitar que ali iria encontrar um pedaço do seu passado, perdido trinta anos atrás.
Primeiro foi um soluço subterrâneo que fez mexer os campos de algodão, encrespando-se como uma onda de espuma. Os geólogos tinham instalado as suas máquinas de medir com semanas de antecedência e já sabiam que a montanha tinha acordado outra vez. Desde há muito que previam que o calor da erupção podia desprender os gelos eternos das ladeiras do vulcão, mas ninguém fez caso dessas advertências, porque soava a um conto de velhos. Os povos do vale continuaram a sua vida surdos aos queixumes da terra, até à noite dessa quarta-feira de Novembro fatal, quando um longo ruído anunciou o fim do mundo e as paredes de neve se desprenderam, rodando numa avalancha de barro, pedras e água que caiu sobre as aldeias, sepultando-as debaixo de metros insondáveis de vómito telúrico. Mal conseguiram sair da paralisia do primeiro espanto, os sobreviventes viram que as casas, as praças, as igrejas, as plantações brancas de algodão, os sombrios bosques de café e as pastagens dos touros de cobrição tinham desaparecido. Muito depois, quando chegaram os voluntários e os soldados para salvar os vivos e avaliar a dimensão do cataclismo, calcularam que debaixo do lodo havia mais de vinte mil seres humanos e um número impreciso de animais, apodrecendo num caldo viscoso.
Também tinham sido destruídos os bosques e os rios e à vista não havia senão um imenso deserto de barro. Quando de madrugada telefonaram do Canal, Rolf Carlé e eu estávamos juntos.
Saltei da cama tonta de sono e fui preparar café enquanto ele se vestia à pressa. Meteu os seus instrumentos de trabalho numa bolsa de lona verde que trazia sempre consigo, e despedimo-nos como tantas outras vezes. Não tive nenhum pressentimento. Fiquei na cozinha a beber o meu café e a planear as horas sem ele, certa de que estaria de volta no dia seguinte.
Foi dos primeiros a chegar, porque enquanto outros jornalistas se aproximavam das margens do pântano em jipes, em bicicletas, a pé, abrindo caminho cada um como melhor podia, ele contava com o helicóptero da televisão e pôde voar por cima da avalancha. Nos ecrãs apareciam as cenas captadas pela câmara do seu assistente, onde ele se via enterrado até aos joelhos, com um microfone na mão, no meio de um alvoroço de meninos perdidos, de mutilados, de cadáveres e ruínas. O relato chegou-nos através da sua voz tranquila. Durante anos tinha-o visto no noticiário, remexendo em batalhas e catástrofes, sem que nada o fizesse parar, com uma perseverança temerária e sempre me assombrou a sua atitude calma perante o perigo e o sofrimento, como se nada conseguisse abalar as suas forças nem desviar a sua curiosidade. O medo parecia não o tocar, mas ele confessara-me que não era um homem valente, nem nada que se parecesse. Julgo que a lente da máquina tinha um efeito estranho nele, como se o transportasse a outro tempo, do qual ele podia ver os acontecimentos sem participar realmente neles. Ao conhecê-lo melhor compreendi que essa distância fictícia mantinha-o a salvo das suas próprias emoções.
Rolf Carlé esteve junto de Açucena desde o princípio, filmou os voluntários que a descobriram e os primeiros que tentaram aproximar-se dela, a sua câmara focava com insistência a menina, a sua cara morena, os seus grandes olhos desolados, o emaranhado compacto do seu cabelo. Naquele sítio o lodo era denso e havia perigo de se enterrarem ao pisá-lo. Atiraram-lhe uma corda, que ela não quis agarrar, até que lhe gritaram que a apanhasse, então tirou uma mão e tentou mover-se, mas a seguir afundou-se ainda mais. Rolf tirou a bolsa e o resto do seu equipamento e avançou pelo pântano, comentando para o microfone do ajudante que fazia frio e já começava a pestilência dos cadáveres.
- Como te chamas? - perguntou à rapariga, e ela respondeu com o seu nome de flor. - Não te mexas, Açucena - ordenou-lhe Rolf Carlé, continuou a falar-lhe sem pensar o que dizia, apenas para a distrair, enquanto se arrastava lentamente com barro até à cintura. O ar à sua volta parecia tão turvo como o lodo.
Por aquele lado não era possível aproximar-se, por isso recuou e foi dar uma volta por onde o terreno parecia mais firme. Quando por fim estava perto dela, pegou na corda e amarrou-lha debaixo dos braços para que a pudessem içar. Sorriu-lhe com aquele seu sorriso que lhe diminuía os olhos e faz voltar à infância, disse-lhe que tudo ia bem, já estava com ela e que, em seguida, a tirariam. Fez sinais aos outros para que a içassem, mas mal a corda se esticou a rapariga gritou. Tentaram de novo e apareceram os seus ombros e os braços, mas não puderam movê-la mais, estava atascada. Alguém sugeriu que talvez tivesse as pernas apertadas entre as ruínas da sua casa e ela disse que não eram só os escombros, também a prendiam os corpos dos irmãos, agarrados a ela.
- Não te preocupes, vamos tirar-te daqui - prometeu Rolf.
Apesar das falhas de transmissão, notei que a voz dele se calava e senti-me mais perto por isso. Ela olhou-o sem responder.
Nas primeiras horas Rolf Carlé esgotou os recursos do seu engenho para a salvar. Lutou com paus e cordas, mas cada esticão era um suplício intolerável para a prisioneira.
Lembrou-se de fazer uma alavanca com uns paus, mas isso não deu resultado e teve de abandonar também essa ideia. Conseguiu dois soldados que trabalharam com ele algum tempo, mas depois deixaram-no sozinho, porque muitas outras vítimas reclamavam ajuda. A rapariga não podia mover-se e mal conseguia respirar, mas não parecia desesperada, como se uma resignação ancestral lhe permitisse ler o destino. O jornalista, por seu lado, estava decidido a arrancá-la à morte. Levaram-lhe um pneu que ele colocou debaixo dos braços dela como um salva-vidas, depois atravessou uma tábua pelo buraco para se apoiar e alcançá-la melhor. Como era impossível remover os escombros às cegas, mergulhou um par de vezes para explorar aquele inferno, mas saiu exasperado, coberto de lodo, cuspindo pedras. Achou que necessitava de uma bomba para extrair a água e enviou alguém para a pedir pela rádio, mas voltaram com a mensagem de que não havia transporte e não podiam enviá-la antes da manhã seguinte.
- Não podemos esperar tanto! - reclamou Rolf Carlé, mas naquele salve-se quem puder ninguém lhe deu ouvidos. Teriam ainda de passar muitas horas mais antes que ele aceitasse que o tempo se esgotara e que a realidade tinha sofrido uma distorção irremediável.
Um médico militar aproximou-se para examinar a menina e afirmou que o seu coração funcionava bem e que se não arrefecesse podia resistir mais aquela noite.
- Tem paciência, Açucena, amanhã vão trazer a bomba – disse Rolf Carlé, fazendo por a consolar.
- Não me deixes sozinha - pediu-lhe ela.
- Não, claro que não.
Levaram-lhe café e ele deu-o à rapariga, sorvo a sorvo. O líquido quente animou-a, começou a falar da sua pequena vida, da sua família e da escola, de como era aquele pedaço do mundo antes de rebentar o vulcão. Tinha treze anos e nunca saíra dos limites da sua aldeia. O jornalista empurrado por um optimismo prematuro, convenceu-se de que tudo terminaria bem, chegaria a bomba, extrairiam a água, tirariam os escombros e Açucena seria trasladada em helicóptero para um hospital, onde se actuaria com rapidez e onde ele poderia visitá-la e levar-lhe presentes. Pensou que já não tinha idade para bonecas e não soube do que ela gostaria, talvez de um vestido. Não percebo muito de mulheres, concluiu divertido, calculando que tivera muitas na sua vida, mas que nenhuma lhe ensinara esses pormenores. Para enganar as horas começou a contar-lhe as suas viagens e as suas aventuras de caçador de notícias, e quando se esgotaram as recordações deitou mão da imaginação para inventar qualquer coisa que pudesse distraí-la. Em alguns momentos ela dormitava, mas ele continuava a falar-lhe no escuro, para lhe demonstrar que não se tinha ido embora e para vencer a perseguição da incerteza. Foi uma longa noite.
A muitas milhas dali, eu observava num ecrã Rolf Carlé e a rapariga. Não resisti a esperar em casa e fui até à Televisão Nacional, onde muitas vezes passei noites inteiras com ele editando programas. Assim, estive perto dele e pude ver o que ele viveu naqueles três dias definitivos. Fui ter com quanta gente importante existe na cidade, com os senadores da República, os generais das Forças Armadas, o embaixador norte-americano e o presidente da Companhia de Petróleos, pedindo-lhes uma bomba para extrair o barro, mas só obtive promessas vagas. Comecei a pedi-la com urgência pela rádio e televisão, a ver se alguém podia ajudar-nos. Entre as chamadas, corria ao centro de recepção para não perder as imagens do satélite, que chegavam a cada momento com novos pormenores da catástrofe. Enquanto os jornalistas seleccionavam as cenas de maior impacte para o noticiário, eu procurava aquelas em que aparecia o poço de Açucena. O ecrã reduzia o desastre a um só plano e acentuava a tremenda distância que me separava de Rolf Carlé, no entanto eu estava com ele, cada padecimento da menina doía-me como a ele, sentia a sua mesma frustração, a sua impotência. Ante a impossibilidade de comunicar com ele, veio-me à ideia o recurso fantástico de me concentrar para o alcançar com a força do pensamento e assim dar-lhe ânimo. Por momentos atordoava-me numa frenética e inútil actividade, de vez em quando o dó vergava-me e começava a chorar e outras vezes o cansaço vencia-me e julgava estar a olhar por um telescópio a luz de uma estrela morta há um milhão de anos.
No primeiro noticiário da manhã vi aquele inferno, onde flutuavam cadáveres de homens e animais arrastados pelas águas de novos rios, formados numa só noite pela neve derretida. Do lodo sobressaíam as copas de algumas árvores e o campanário de uma igreja, onde várias pessoas tinham encontrado refúgio e esperavam com paciência as equipas de salvamento. Centenas de soldados e de voluntários da Defesa Civil tentaram remover escombros em busca dos sobreviventes, enquanto filas de espectros em farrapos esperavam a sua vez de uma malga de caldo. As cadeias de rádio informaram que os seus telefones estavam congestionados pelas chamadas de famílias que ofereciam albergue às crianças órfãs. Faltavam a água para beber, a gasolina e os alimentos. Os médicos, resignados a amputar membros sem anestesia, pediam soro, pelo menos, analgésicos e antibióticos, mas a maior parte dos caminhos estavam interrompidos e ainda por cima a burocracia atrasava tudo. Entretanto, o barro contaminado pelos cadáveres em decomposição ameaçava os vivos com a peste.
Açucena tremia apoiada ao pneu que a sustinha sobre a superfície. A imobilidade e a tensão tinham-na debilitado muito, mas mantinha-se consciente e ainda falava com voz perceptível quando lhe aproximaram um microfone. O tom de voz era humilde, como se estivesse pedindo perdão por causar tantas moléstias. Rolf Carlé tinha a barba crescida e olheiras, parecia esgotado. Mesmo a essa enorme distância pude perceber a qualidade desse cansaço, diferente de todas as fadigas anteriores da sua vida. Tinha esquecido por completo a câmara, já não podia olhar a menina através de uma lente. As imagens que nos chegavam não eram do seu assistente, mas de outros jornalistas que se tinham apoderado de Açucena atribuindo-lhe a patética responsabilidade de encarnar o horror do acontecido naquele lugar. Logo a partir do amanhecer, Rolf Carlé esforçou-se de novo para mover os obstáculos que retinham a rapariga naquela tumba, mas usava só as mãos, não se atrevia a utilizar uma ferramenta, porque podia feri-la. Deu a Açucena a chávena de papa de arroz e banana que o Exército distribuía, mas ela vomitou imediatamente. Acudiu um médico e comprovou que estava com febre, disse que não se podia fazer muito, os antibióticos estavam reservados para os casos de gangrena. Também se aproximou um sacerdote para a benzer e pendurar-lhe uma medalha da Virgem ao pescoço. à tarde começou a cair uma chuvinha suave, persistente.
- O céu está a chorar-murmurou Açucena e pôs-se a chorar também.
- Não te assustes - suplicou-lhe Rolf. - Tens de reservar as tuas forças e manter-te tranquila, tudo acabará bem, eu estou contigo e vou-te tirar daqui de qualquer maneira.
Voltaram os jornalistas para a fotografar e perguntar-lhe as mesmas coisas, que ela já nem conseguia responder. Entretanto, chegavam mais equipas de televisão e cinema, rolos de cabos, cintos, películas, vídeos, lentes de precisão, gravadores, consolas de som, luzes, reflectores, baterias e motores, caixas com provisões, electricistas, técnicos de som e operadores de câmara, que mandaram o rosto de Açucena para milhões de ecrãs em todo o mundo. E Rolf Carlé continuava a pedir a sua bomba. O desdobramento de recursos deu resultado e na Televisão Nacional começámos a receber imagens mais claras e sons mais nítidos, a distância pareceu encurtar-se subitamente e tive a sensação atroz de que Açucena e Rolf se encontravam a meu lado, separados de mim por um vidro irredutível. Pude seguir os acontecimentos de hora a hora, soube quanto o meu amigo fez para arrancar a menina à sua prisão e para a ajudar a suportar o seu calvário, ouvi fragmentos do que disseram e o resto pude adivinhá-lo, estive presente quando ela ensinou Rolf a rezar e quando ele a distraiu com os contos que eu lhe contei em mil e uma noites debaixo do mosquiteiro branco da nossa cama.
Ao cair a noite do segundo dia ele procurou fazê-la dormir com velhas canções da Áustria aprendidas com a sua mãe, mas ela estava para lá do sono. Passaram grande parte da noite a falar, os dois extenuados, esfomeados, sacudidos pelo frio. E então, pouco a pouco, caíram as firmes comportas que seguraram o passado de Rolf Carlé durante muitos anos, e a torrente de tudo quanto tinha ocultado nas camadas mais profundas e secretas da memória saiu por fim, arrastando na sua passagem os obstáculos que durante tanto tempo bloquearam a sua consciência.
Nem tudo pôde dizer a Açucena, ela talvez não soubesse que havia mundos mais para lá do mar, nem tempo anterior ao seu, era incapaz de imaginar a Europa na época da guerra, por isso não lhe contou a derrota, nem a tarde em que os Russos o levaram para o campo de concentração para enterrar os prisioneiros mortos de fome. Para quê explicar-lhe que os corpos nus, empilhados como um monte de paus, pareciam de loiça quebradiça? Como falar-lhe dos fornos e das forcas, àquela menina moribunda? Nem mencionou a noite em que viu a mãe nua, calçada com sapatos vermelhos de salto de agulha, chorando de humilhação. Muitas coisas calou, mas naquelas horas reviveu pela primeira vez tudo aquilo que a sua mente tinha tentado apagar. Açucena entregou-lhe o seu medo e assim, sem querer, obrigou Rolf a encontrar-se com o seu. Ali, junto daquele poço maldito, foi impossível para Rolf continuar a fugir de si mesmo e o terror visceral que marcou a sua infância assaltou-o de surpresa. Recuou até à idade de Açucena e mais atrás, e encontrou-se como ela apanhado num poço sem saída, enterrado em vida, a cabeça rente ao chão, viu junto à sua cara as botas e as pernas do pai, que tinha tirado o cinto e o agitava no ar com um silvo inesquecível de víbora furiosa. A dor invadiu-o, intacto e preciso, como sempre esteve escondida na sua mente. Voltou ao armário onde o pai o punha fechado à chave para o castigar por faltas imaginárias e ali esteve duas eternas horas com os olhos fechados para não ver a escuridão, os ouvidos tapados com as mãos para não ouvir os latidos do seu próprio coração, tremendo, encolhido como um animal. Na neblina das recordações encontrou a sua irmã Katharina, uma doce criança atrasada que passou a existência escondida com a esperança de que o pai esquecesse a desgraça do seu nascimento. Arrastou-se até ela debaixo da mesa da casa de jantar e ali ocultos por uma grande toalha branca, os dois meninos permaneceram abraçados, atentos aos passos e às vozes.
O cheiro de Katharina chegou-lhe misturado com o do seu próprio suor, com os aromas da cozinha, alho, sopa, pão saído do forno e um fedor estranho de barro apodrecido. A mão da irmã na sua, a sua respiração assustada, o roçar do seu cabelo selvagem na sua face, a expressão cândida do seu olhar.
Katharina, Katharina... surgiu em frente de si flutuando como uma bandeira, envolta na toalha branca transformada em mortalha, e pôde por fim chorar a sua morte e a culpa de tê-la abandonado. Compreendeu então que as suas façanhas de jornalista, aquelas que tantos reconhecimentos e tanta fama lhe tinham dado, eram só uma tentativa de manter sob controlo o seu medo mais antigo, mediante a aldrabice de se refugiar atrás de uma lente para ver se assim a realidade lhe parecia mais tolerável. Enfrentava riscos desmesurados como exercício de coragem, treinando-se de dia para vencer os monstros que o atormentavam de noite. Mas tinha chegado o momento da verdade e já não pôde continuar a fugir ao seu passado. Ele era Açucena, estava enterrado no barro, o seu terror não era a emoção remota de uma infância quase esquecida, era uma garra na garganta. No sufoco do pranto apareceu-lhe a mãe, vestida de cinzento, com a sua carteira de pele de crocodilo apertada contra o regaço, tal como a vira pela última vez no cais, quando foi despedir-se ao navio em que ele embarcou para a América. Não vinha secar-lhe as lágrimas, mas dizer-lhe que pegasse numa pá, porque a guerra terminara e agora tinham de enterrar os mortos.
- Não chores. já não me dói nada, estou bem - disse-lhe Açucena ao amanhecer.
- Não choro por ti, choro por mim, que me dói tudo – sorriu Rolf Carlé.
No vale do cataclismo começou o terceiro dia com uma luz pálida entre nuvens carregadas. O Presidente da República fez-se transportar à zona e apareceu em traje de campanha para confirmar que era a pior desgraça do século. O país estava de luto, as nações irmãs tinham oferecido ajuda, ordenava-se o estado de sítio, as Forças Armadas seriam Inciementes, fuzilariam sem mais nada quem fosse surpreendido a roubar ou a cometer outras malfeitorias. Acrescentou que era impossível tirar todos os cadáveres nem dar conta dos milhares de desaparecidos, por isso se declarava todo o vale campo santo e os bispos viriam celebrar uma missa solene pelas almas das vítimas. Dirigiu-se às tendas do Exército, onde se amontoavam os que tinham sido salvos, para lhes dar o alívio de promessas incertas, e ao improvisado hospital, para dar uma palavra de ânimo aos médicos e enfermeiras, esgotados por tantas horas de penúria. Depois fez-se conduzir ao lugar onde estava Açucena, que então já era célebre, porque a sua imagem tinha dado volta ao planeta. Saudou-a com a lânguida mão de estadista e os microfones registaram a sua voz comovida e o acento paternal, quando lhe disse que o seu valor era um exemplo para a pátria.
Rolf Carlé interrompeu-o para lhe pedir uma bomba e ele assegurou-lhe que se ocuparia do assunto pessoalmente.
Consegui ver Rolf por uns instantes, de cócoras junto ao poço.
No noticiário da tarde encontrava-se na mesma postura: e eu, olhando o ecrã como uma adivinha olha a sua bola de cristal, percebi que algo fundamental tinha mudado, nele, adivinhei que durante a noite se tinham desmoronado as suas defesas e se entregara à dor, vulnerável, finalmente. Aquela menina tocou a parte da sua alma a que ele próprio não tivera acesso e que nunca partilhara comigo. Rolf quis consolá-la e foi Açucena quem o consolou.
Dei-me conta do momento preciso em que Rolf deixou de lutar e se abandonou ao tormento de vigiar a agonia da rapariga. Eu estive com eles, três dias e duas noites, espiando-os do outro lado da vida. Encontrava-me ali quando ela lhe disse que nos seus treze anos nunca um rapaz tinha gostado dela e que era pena ir-se embora deste mundo sem conhecer o amor, e ele assegurou-lhe que a amava mais do que poderia amar alguém, mais que à sua mãe e à sua irmã, mais que a todas as mulheres que tinham dormido nos seus braços, mais que a mim, sua companheira, e que daria qualquer coisa para estar apanhado naquele poço em seu lugar, que trocaria a sua vida pela dela, e vi como se inclinou sobre a sua pobre cabeça e a beijou na testa, vencido por um sentimento doce e triste que não sabia nomear. Senti como nesse instante se salvaram ambos do desespero, se desprenderam do lodo, se elevaram por cima dos abutres e dos helicópteros e voaram juntos sobre aquele vasto pântano de podridão e lamentos. E, finalmente, puderam aceitar a morte. Rolf Carlé rezou em silêncio para que ela morresse depressa, porque já não era possível suportar tanta dor.
Então eu já tinha conseguido uma bomba e estava em contacto com um general disposto a enviá-la na madrugada do dia seguinte num avião militar. Mas ao anoitecer daquele terceiro dia, debaixo das implacáveis lâmpadas de quartzo e das lentes de cem máquinas, Açucena rendeu-se, os seus olhos perdidos nos daquele amigo que a tinha ajudado até ao fim. Rolf Carlé tirou-lhe o salva-vidas, fechou-lhe as pálpebras, segurou-a apertada contra o seu peito por uns minutos e depois soltou-a.
Ela afundou-se lentamente, uma flor no barro.
Estás de volta junto de mim, mas já não és o mesmo homem. Vou contigo muitas vezes ao Canal e vemos de novo os vídeos de Açucena, tu os estudas com atenção, procurando algo que pudesses ter feito para a salvar e não te ocorreu a tempo. Ou talvez os examines para te veres como num espelho, a nu. As tuas câmaras estão abandonadas num armário, não escreves nem cantas, ficas durante horas sentado em frente da janela olhando as montanhas. A teu lado, eu espero que completes a viagem até ao interior de ti mesmo e te cures das velhas feridas. Sei que quando regressares dos teus pesadelos caminharemos outra vez de mão dada, como dantes.
Isabel Allende

domingo, dezembro 06, 2009

nada como um novo projeto

Nada como um novo projeto para fazer a gente cravar a bunda na cadeira e produzir. Pois bem, fui convidado para participar de um blog, como colunista. O resultado você vai poder conferir ao longo do tempo no Gestão Dinâmica, um blog sobre gestão de pessoas e temas relacionados à área. Para quem se interessa, é uma ótima leitura.